Em tempos de aberrações teológicas, apologistas e líderes evangélicos demonstram perplexidade diante de desvios doutrinários
O crente brasileiro sabe: vez por outra, a Igreja Evangélica é agitada por uma novidade. Pode ser a chegada de um novo movimento teológico, de uma doutrina inusitada ou mesmo de uma prática heterodoxa, daquelas que causam entusiasmo em uns e estranheza em outros. Quem frequentava igrejas nos anos 1980 há de se lembrar do suposto milagre dos dentes de ouro, por exemplo. Na época, milhares de crentes começaram a testemunhar que, durante as orações, obturações douradas apareciam sobrenaturalmente em suas bocas, numa espécie de odontologia divina. Muito se disse e se fez em nome dessa alegada ação sobrenatural de Deus, que atraiu muita gente aos cultos. Embora contestados por dentistas e nunca satisfatoriamente explicados – segundo especialistas, o amarelecimento natural de obturações ao longo do tempo poderia explicar o fenômeno, e houve quem dissesse que a bênção nada mais era que o efeito de sugestão –, os dentes de ouro marcaram época e ainda aparecem em bocas por aí, numa ou noutra congregação. Outras manifestações nada convencionais sacudiram o segmento pentecostal de tempos em tempos. Uma delas era a denominada queda no Espírito, quando o fiel, durante a oração, sofria uma espécie de arrebatamento, caindo ao solo e permanecendo como que em transe. Disseminada a partir do trabalho de pregadores americanos como Benny Hinn e Kathryn Kuhlman, a queda no poder passou a ser largamente praticada como sinal de plenitude espiritual e chegou com força ao Brasil. A coqueluche também passou, mas ainda hoje diversos ministérios e pregadores fazem do chamado cair no poder elemento importante de sua liturgia. A moda logo foi substituída por outras, ainda mais bizarras, como a “unção do riso” e a “unção dos animais”. Disseminadas pela Comunhão Cristã do Aeroporto de Toronto, no Canadá, a partir de 1993, tais práticas beiravam a histeria coletiva – a certa altura do culto, diversas pessoas caíam ao chão, rindo descontroladamente ou emitindo sons de animais como leões e águias. Tudo era atribuído ao poder do Espírito Santo.
A chamada “bênção de Toronto” logo ganhou mundo, à semelhança das mais variadas novidades. Parece que, quanto mais espetacular a manifestação, mais ela tende a se popularizar, atropelando até mesmo o bom senso. Mas o que para muita gente é ato profético ou manifestação do poder do Senhor também é visto por teólogos moderados como simples modismos ou – mais sério ainda – desvios doutrinários. Pior é quando a nova teologia é usada com fins fraudulentos, para arrancar uma oferta a mais ou exercer poder eclesiástico autoritário. “A Bíblia diz claramente que haverá a disseminação de heresias nos últimos dias, e não um grande reavivamento, como alguns estão anunciando”, alerta Araripe Gurgel, pesquisador da Agência de Informações Religiosas (Agir). Pastor da Igreja Cristã da Trindade, ele é especialista em seitas e aberrações cristãs e observa que cada vez mais a Palavra de Deus tem sido contaminada e pervertida pelo apelo místico. “Esse tipo de abordagem introduz no cristianismo heresias disfarçadas em meias-verdades, levando a uma religião de aparência, sensorial, sem a real percepção de Deus”, destaca.
“Não dá para ficar quieto diante de tanta bizarrice”, protesta o pastor e escritor Renato Vargens, da Igreja Cristã da Aliança, em Niterói (RJ). Apologista, ele tem feito de seu blog uma trincheira na luta contra aberrações teológicas como as que vê florescer, sobretudo, no neopentecostalismo. “Acredito, que, mais do que nunca, a Igreja de Cristo precisa preservar a sã doutrina, defendendo os valores inegociáveis da fé cristã. A apologética cristã é um ministério indispensável à saúde do Corpo de Cristo”. Na internet, ele disponibiliza farto material, como vídeos que mostram um pouco de tudo. Um dos mais comentados foi um em que um dos líderes do Ministério de Madureira das Assembleias de Deus, Samuel Ferreira, aparece numa espécie de arrebatamento sobre uma pilha de dinheiro, arrecadado durante um culto. “Acabo de ver no YouTube o vídeo de um falso profeta chamado reverendo João Batista, que comercializa pó sagrado, perfume da prosperidade e até um tal martelão do poder”. acrescenta Vargens. Autor do recém-lançado livro Cristianismo ao gosto do freguês, em que denuncia a redução da fé evangélica a mero instrumento de manipulação, o pastor tem sido um crítico obstinado de líderes pentecostais que fazem em seus programas de TV verdadeiras barganhas em nome de Jesus. “O denominado apóstolo Valdomiro Santiago faz apologia de sua denominação, a Igreja Mundial do Poder de Deus, desqualificando todas as outras. E tem ensinado doutrinas absolutamente antibíblicas, onde o ‘tomá-lá-dá-cá’ é a regra”. Uma delas é o trízimo, em que desafia o fiel a ofertar à instituição 30% de seus rendimentos, e não os tradicionais dez por cento. A “doutrina das sementes”, defendida por pregadores americanos como Mike Murdock e Morris Cerullo nos programas do pastor Silas Malafaia, também rendeu diversos posts. Segundo eles, o crente deve ofertar valores específicos – no caso, donativos na faixa dos mil reais – em troca de uma unção financeira capaz de levá-lo à prosperidade. “Trata-se de um evangelho espúrio, para tirar dinheiro dos irmãos”, reclama Vargens. “Deus não é bolsa de valores, nem se submete às nossas barganhas ou àqueles que pensam que podem manipular o sagrado estabelecendo regras de sucesso pessoal.”
Crise teológica
Numa confissão religiosa tão multifacetada em suas expressões e diversa em termos de organização e liderança, é natural que o segmento evangélico sofra com a perda de identidade. O próprio conceito do que é ser crente no país – tema de capa da edição nº 15 de CRISTIANISMO HOJE – é extremamente difuso. E muitas denominações, envolvidas em práticas heterodoxas, vez por outra adotam ritos estranhos à tradição protestante. Joaquim de Andrade, pastor da Igreja Missionária Evangélica Maranata, do Rio, é um pesquisador de seitas e heresias que já enfrentou até conflitos com integrantes de outras crenças, como testemunhas de Jeová e umbandistas. Destes tempos, guarda o pensamento crítico com que enxerga também a situação atual da fé evangélica: “Vivemos uma verdadeira crise teológica, de identidade e integridade. Os crentes estão dando mais valor às manifestações espirituais do que à Palavra de Deus”.
Neste caldo, qualquer liderança mais carismática logo conquista seguidores, independentemente da fidelidade de sua mensagem à Bíblia. “Manifestações atraem pessoas. O próprio Nicodemos concluiu que os sinais que Cristo operou foram além do alcance do povo, mas não temos evidência de que ele tenha mesmo se convertido”, explica o pastor Russel Shedd, doutor em teologia e um dos mais acreditados líderes evangélicos em atuação no Brasil. Ele refere-se a um personagem bíblico que teve importante discussão com Jesus, que ao final admoestou-lhe da necessidade de o homem nascer de novo pela fé. “Líderes que procuram vencer a competição entre igrejas precisam alegar que têm poder”, observa, lembrando que a oferta do sobrenatural precisa atender à imensa demanda dos dias de hoje. “Mas poder não salva nem transmite amor”, conclui.
“A busca pela expansão evangélica traz consigo essa necessidade de aculturação e, na cultura religiosa brasileira, nada mais puro do que a mistura”, acrescenta o pastor Fabrício Cunha, da Igreja Batista da Água Branca, em São Paulo. “O candomblé já fez isso, usando os símbolos do catolicismo; o espiritismo, usando a temática cristã; e agora, vêm os evangélicos neopentecostais, usando toda uma simbologia afro e um misticismo pagão”, explica. Como um dos coordenadores do Fórum Jovem de Missão Integral e membro da Fraternidade Teológica Latinoamericana, ele observa que mesmo os protestantes são fruto de uma miscigenação generalizada, o que, no campo da religião, tem em sua gênese um alto nível de sincretismo.
Acontece que, em determinadas comunidades cristãs, alguns destes elementos precisam ser compreendidos como estratégias de comunicação e atração de novos fiéis. Aí, vale tanto a distribuição de objetos com apelo mágico, como rosas ungidas ou frascos de óleo, como a oferta de manifestações tidas como milagrosas, como o já citado dente de ouro ou as estrelinhas de fogo – se o leitor ainda não conhece, saiba que trata-se de pontos luminosos que, segundo muitos crentes, costumam aparecer brilhando em reuniões de busca de poder, sobretudo vigílias durante a noite ou cultos realizados nos montes, prática comum nas periferias de grandes cidades como o Rio de Janeiro. O objetivo das tais estrelinhas? Ninguém sabe, mas costuma-se dizer que é fogo puro, assim como tantas outras manifestações do gênero.
“Alguns desses elementos são resultado de um processo de sectarização religiosa”, opina o teólogo e mestre em ciências da religião Valtair Miranda. “Ou seja, quanto mais exótica for a manifestação, mais fácil será para esse líder carismático atrair seguidores para seu grupo”. Miranda explica que, como as igrejas evangélicas, sobretudo as avivadas, são, em linhas gerais, muito parecidas, o que os grupos sectários querem é se destacar. “Eles preconizam um determinado tópico teológico ou passagem bíblica, e crescem em torno disso. Objetos como lenços ungidos, medalhas, sal ou sabonete santificados são exemplos. Quanto mais diferente, maior a probabilidade de atrair algum curioso”. A estratégia tende a dar resultado quando gira em torno de uma figura religiosa carismática. “Sem carisma, estes elementos logo provocam sarcasmo e evasão”, ressalva. O estudioso lembra o que caracteriza fundamentalmente um grupo sectário – o isolamento. “Uma seita precisa marcar bem sua diferença para segurar seu adepto. Quanto mais ele levantar seus muros, mais forte será a identidade e a adesão do fiel.”
“Propósito de Deus”
Mas quem faz das manifestações do poder do Espírito Santo parte fundamental de seu ministério defende que apenas milagres não bastam. “É necessário um propósito e uma mudança de vida”, declara o bispo Salomão dos Santos, dirigente da Associação Evangélica Missionária Ministério Vida. Como ele mesmo diz, trata-se de uma igreja movida pelo poder da Palavra de Deus, “que crê que Jesus salva, cura, liberta e transforma vidas”. O próprio líder se diz um fruto desse poder. Salomão conta que já esteve gravemente doente, sofrendo de hepatite, câncer e outras complicações que a medicina não podia curar. “Cheguei a morrer, mas miraculosamente voltei à vida”, garante o bispo, dizendo que chegou a jazer oito horas no necrotério de um hospital. “Voltei pela vontade de Deus”, comemora, cheio de fé.
Consciente, Salomão diz que milagres e manifestações naturais realmente acontecem, mas “somente para a exaltação e a glória do Senhor, e não de homens ou denominações”. O bispo também observa que alguns têm feito do poder extraordinário de Jesus uma grande indústria de milagres: “O Senhor não dá sua glória para ninguém. Ele opera maravilhas através da instrumentalidade de nossas vidas”. E faz questão de reiterar a simplicidade com que Jesus viveu sua vida terrena e que, muitas vezes, realizou grandes milagres sem nenhum alarde. “O agir de Deus não é um espetáculo.”
Sangue fajuto
A novidade chama a atenção pelo seu aspecto bizarro. Num templo da Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd), fiéis caminham através de pórticos representando diversos aspectos da vida (“Saúde”, “Família”, “Finanças”). Até aí, nada demais – os chamados atos proféticos como este são comuns na denominação. O mais estranho acontece depois. Caracterizados como sacerdotes do Antigo Testamento, pastores da Universal recebem as pessoas e, sobre um pequeno altar estilizado, fazem um “sacrifício de sangue”. A nova prática vem ganhando espaço nos cultos da Iurd, igreja que já introduziu no neopentecostalismo uma série de elementos simbólicos. Tudo bem que o sangue não é real (trata-se de simples tinta), mas a imolação simulada vai contra tudo o que ensina o Novo Testamento, segundo o qual Jesus, o Cordeiro de Deus, entregou-se a si mesmo como supremo e definitivo sacrifício pela humanidade. Com sangue puro, e não cenográfico.
Fonte: Cristianismo Hoje / Púlpito Cristão
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